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Ciência do Tráfego Pedestre

por Inês Dantas, em 28.01.14


A propósito do meu post anterior, a Wired, esta semana, diz-nos que existe uma ciência no tráfego pedestre que nos pode ajudar a desenhar melhores cidades. Aqui segue o artigo com análises do Space Syntax: link

publicado às 14:27

Caminhar tempestade acima

por Inês Dantas, em 27.01.14

Atravessando o Regents Canal, Londres  24.10.2013

Senior foi um arquitecto londrino que caminhava todos os dias, de manhã, até ao atelier e, à noite, de volta até casa. Era um verdadeiro entusiasta da caminhada, ao ponto de um dia decidir ir a pé até à Índia. E foi. Andar a pé era para ele uma prática necessária para organizar pensamentos, desenvolver projectos, preparar e digerir o dia. Muito mais do que a actividade física era uma prática de pensamento.

Mudei-me para Londres no início de 2009. Vivia-se a recentemente estalada crise. Os efeitos faziam-se sentir a vários níveis na cidade e no comportamento diário das pessoas. Os restaurantes estavam quase vazios; programas de sábado à tarde/noite com os amigos incluíam piqueniques e churrascos no parque, festas em casa, muito mais do que saídas até pubs, bares e discotecas; a Timeout multiplicava-se com sugestões do que fazer em Londres por pouco dinheiro; os restaurantes ofereciam o credit crunch lunch; e, uma mudança curiosa, as pessoas começaram a andar mais a pé.

Um amigo que vivia em Finsbury Park e trabalhava no Soho começou a fazer este percurso diariamente a pé, cerca de uma hora, ganhando tempo de pensamento. De um momento para o outro, caminhar tinha-se tornado uma prática crítica, por defeito.

Fiz várias vezes o percurso casa – universidade a pé, atravessando Primrose Hill, Regents Park, Portland Place (onde fica o RIBA e pelo consulado português), Fitzrovia, Tottenham Court Road e chegando à University College London. Nestes momentos, o encontro com outras pessoas acontece: a observação directa do que se passa em volta e a possibilidade de interacção.  Caminhar, andar a pé torna-se passear, criar encontros, potenciar a percepção do mundo em redor. Ao mesmo tempo, a actividade constante do caminhar e observar permite libertar os pensamentos da rotina, levando-os a dar um passeio. As palavras passeio em português, Spaziergang em alemão, stroll em inglês, promenade em francês, passeggiatta em italiano denotam não uma necessidade mas sim uma escolha. ‘Vou dar um passeio’ é uma actividade lúdica, ligada a um certo hedonismo, na maioria dos casos urbano, pois quando esta actividade é num outro contexto (rural, paisagístico) tem outros nomes (tal como em alemão wandern). 

Caminhar, passear era também a forma de experienciar o jardim pitoresco. A noção de tempo era muito importante neste conceito. A proximidade com a natureza era vista como uma prática crítica com implicações políticas. (Tal como o jardim geométrico francês está associado ao absolutismo, o jardim pitoresco de raiz inglesa está associado ao liberalismo.) Caminhar pelos jardins traria benefícios, pois como refere Hill, naquele tempo, natureza estava ligada à virtude moral.

No século XIX Thoreau fazia caminhadas ignorando fronteiras de propriedade, ligando-se estas caminhadas as suas ideias em desenvolvimento.

No século XX o conceito de flâneur de Benjamin (influenciado pela poesia de Baudelaire)  foi adaptado do comportamento da sociedade francesa do século XIX e dá um sentido lúdico ao passeio. ‘Flanar’ adaptado em português significa caminhar sem rumo, tal como uma pessoa escolhe perder-se numa cidade para a ir descobrindo. Criticando este termo como típico do burguês sem melhor ocupação, os Situacionistas adaptaram o conceito para dérive. Esta era, entre outras coisas, uma crítica ao consumismo e à sociedade do espetáculo. Assim nascia a psico-geografia associando estados emocionais a lugares.

De Certeau fala-nos da prática do dia-a-dia e do papel do caminhar. Rendell descreve-nos passeios criticos onde ficção e realidade se misturam, inspirados pelo unheimlich de Freud.

Shklovsky escreve que caminhar se torna mais fácil quando se esta distraído, quando um evento qualquer acontece em paralelo, como por exemplo caminhar quando se está entusiasmado no contexto de uma discussão (‘talking up a storm’). Ao escolher o título para este post criei a expressao ‘caminhar tempestade acima’ usando tempestade em sentido metafórico, significando um caminhar que afronta adversidades.

Depois de termos então viajado por algumas situações do caminhar metamorfoseado em passear, ‘flanar’, ‘derivar’ estamos aptos a analisar as cidades portuguesas à luz desta prática.

Quando estudava em Coimbra o meu percurso diário atravessava o Jardim Botânico. No regresso já estava fechado, mas à ida era como um presente, todos os dias de manhã: um espaço aberto à fantasia, a passagem do tempo, as diferentes estações do ano, os diferentes ritmos... A minha passagem por este cenário era de cada vez diferente, de cada vez alterada pelo passeio em si, colocando-me apta a observar o ambiente em meu redor e a reflectir sobre ele.

O clima em Portugal é ameno (pelo menos fora das casas). Reunimos as condições ideais para sermos um país perfeito para andar a pé. Temos sempre a desculpa da topografia para justificar não andar de bicicleta, mas essa desculpa já não se aplica ao acto de caminhar.

Nos tempos de crise que vivemos, não poderá o caminhar ser uma das práticas críticas que andamos à procura? Mais do que poupar uns euros em gasolina e poupar o ambiente a emissões, podermos, ao mesmo tempo, ganhar um espaço de pensamento? Este espaço permite encontrar outros, entender o que se passa à nossa volta, porque fechou aquela loja, porque abriu a outra, hoje o engraxador está bem disposto, a florista fez uma promoção, e por aí fora. Dar tempo para absorver o mundo e experienciar micro-territórios, completar o passeio. Acredito que esta prática possa mudar as cidades.[1] É semelhante ao que Mendes da Rocha refere como a dimensão política da cidade: uma cidade favorável à criação de encontros. E é nestes encontros que nos tornamos mais cidadãos. Então acho que cheguei à minha conclusão: caminhar potencia a cidadania.

E a chuva? Que se caminhe... mesmo que seja tempestade acima!

 

 

 

P.S. Amanhã, que tal ir a pé até ao trabalho? A quem aceitar o desafio, convido a partilhar aqui a experiência, pequenos episódios, observações de circunstância, encontros fortuitos, tudo o que seja relevante para o passeio...



[1] Vamos a isto, ponto de interrogação. Lisboa podia começar e criar programas de incentivos, juntamente com o comércio local, a quem andasse a pé. Fosse através de apps que gravam os roteiros e depois de x quilómetros o feliz contemplado ganharia uma bica no próximo café; ideias não faltarão.  Os entusiastas do equipamento procurariam como primeiro passo o equipamento certo para andar a pé, sapatos de caminhada. Pois então que a nossa indústria de calçado faça propostas de design interessante e crie campanhas onde todos podem ganhar.

 

publicado às 10:04




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